Por Adriana Donato e Adriana Rouanet

1980-1990 – Contexto histórico e econômico nacional

No início dos anos 80, o Brasil ainda vivia sob a ditadura militar. Ao longo da década surgiram movimentos envolvendo a participação de intelectuais, artistas e outras personalidades políticas, sendo que o principal objetivo era a redemocratização do país, no qual a sociedade civil pudesse escolher seus governantes. Contudo, Tancredo Neves foi eleito presidente de forma indireta e após seu falecimento, ainda em 1985, José Sarney, seu vice, assumiu a Presidência da República.

Nesse mesmo ano foi criado o Ministério da Cultura, e os primeiros ministros da pasta foram o jornalista José Aparecido de Oliveira e o professor Aluísio Pimenta. Em 1986, assumiu o economista Celso Furtado (1986-88), o qual foi o responsável pela edição da primeira Lei de Incentivo à Cultura no Brasil – conhecida como Lei Sarney, n° 7.505 /1986.

A Constituição Federal de 1967, vigente naquele momento, trazia a cultura inserida no Capítulo III “Da Família, da Educação e da Cultura”, que previa apenas no Art. 172 “O amparo à cultura é dever do Estado”. Ou seja, a cultura ainda era vista de forma paternalista sob a intervenção do Estado.

A nova Constituição Federal de 1988 confirma o fim da ditadura e a cultura ganha, pela primeira vez, uma sessão específica, eis que o Capítulo III, inaugura a Seção II – Da Cultura, com os artigos 215 “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais” e 216, que trata do patrimônio cultural de natureza material e imaterial.

Após a redemocratização, ocorreram as primeiras eleições diretas para a Presidência da República, com a eleição de Fernando Collor de Mello, o qual, logo que assumiu, reduziu ministérios, sendo que o da Cultura foi transformado em Secretaria Nacional da Cultura e revogada a Lei Sarney. Sergio Paulo Rouanet foi nomeado a secretário Nacional de Cultura e responsável pela edição da nova Lei de Incentivo à Cultura, que ficou conhecida popularmente como Lei Rouanet.

De um lado, a extinção do Ministério, que prejudica a continuidade da construção de uma política pública de cultura, e, de outro, a criação da Lei nº 8.313/91 (chamada de Rouanet) com previsão orçamentária de recursos do Tesouro Nacional, por meio do incentivo fiscal, para que pessoas físicas e jurídicas possam investir em projetos culturais, mediante doações, patrocínios, ou contribuições ao Fundo Nacional da Cultura, com a possibilidade de abatimento do Imposto de Renda.

Sergio Paulo Rouanet e o Iluminismo

Nascido em 23 de fevereiro de 1934, no Rio de Janeiro, diplomata de carreira, filósofo, cientista político e membro da Academia Brasileira de Letras, o embaixador Sergio Paulo Rouanet é defensor do Iluminismo e do Universalismo, da dignidade humana, da razão, da liberdade e dos direitos humanos e contrário a todas as formas de repressão.

Rouanet, quando recebeu o convite para assumir o cargo de secretário Nacional de Cultura em 1991, primeiramente conversou com alguns amigos, entre eles o filósofo e diplomata Antônio Houaiss , pois, embora sua contribuição pudesse acrescentar muito à cultura brasileira, tinha consciência de que essa não seria uma missão simples, tendo sido aconselhado por esse a aceitar a função, licenciando-se, então, do Itamaraty, onde, durante 40 anos, como diplomata, representou o Brasil no exterior, nas Nações Unidas e em consulados e embaixadas, e assumiu a Secretaria Nacional da Cultura.

A cultura de certo modo está interligada com a essência da diplomacia – na preservação e na abertura para a construção de novas ideias, no respeito e na aproximação de povos diferentes, crenças divergentes, a cultura, em si, tem o poder de fazer a mediação de conflitos como nenhuma outra criação da sociedade. Stuart Hall, um dos maiores pesquisadores sobre estudos culturais, fazia essa relação da cultura com as estruturas sociais de poder, as pressões que se poderia fazer através das políticas culturais (HALL, 2003, p.12).

Em uma entrevista gravada em 2019 para o Documentário “Rouanet: Cidadão do Mundo”, filme em produção, Rouanet explicou que como filósofo explorou o conceito de universalismo e sua relação como o localismo e o particularismo, afirmando que “a cultura faz parte do patrimônio de um povo”. Naquele momento, Rouanet percebeu que editar uma nova lei de incentivo à cultura nos mesmos moldes que a Lei Sarney, ou seja, o incentivo fiscal, um regulamento que utiliza mecanismos de mercado para apoiar a produção cultural, essa seria sua maior contribuição para a cultura brasileira.

A essência da Lei de Incentivo à Cultura

A chamada “Lei Rouanet”, quando originalmente concebida por Rouanet, nasceu com fundamentos universalistas, como o respeito à diversidade cultural brasileira, em defesa do pensamento crítico, da liberdade de expressão, dos direitos humanos e contra todas as formas de repressão. A Lei também traz em sua essência propósitos iluministas, como o conceito de liberdade de expressão, no caso o direito do artista criador de exprimir e viabilizar a sua criação artístico-cultural, independentemente de suas circunstâncias sociais e econômicas, assim lhe dando autonomia, emancipação e reconhecimento.

Rouanet propunha, pela Lei, assegurar a toda a população o “acesso ao financiamento, produção e usufruto de produtos culturais, possibilitando a qualquer pessoa tornar-se produtora cultural e ter acesso ao produto cultural” (ROUANET, 2019).

Entre os objetivos descritos no artigo 1º da Lei estão: livre acesso e o exercício dos direitos culturais; promoção e difusão da produção cultural; proteção das expressões, dos modos de criar, fazer e viver da sociedade brasileira; preservação dos bens materiais e imateriais do patrimônio cultural e histórico brasileiro; desenvolvimento da consciência internacional e o respeito aos valores culturais de outros povos ou nações; assim como produção e difusão de bens culturais de valor universal, formadores e informadores de conhecimento. Em favor da razão e da liberdade de criação.

A Lei de Incentivo à Cultura ampliou as funcionalidades já contidas na lei anterior: aprimorou o Incentivo Fiscal, ratificou o Fundo de Promoção Cultural, criado pela Lei n° 7.505/1986, passando a denominar-se Fundo Nacional da Cultura (FNC) e criou o (Ficart) que são Fundos de Investimento Cultural e Artístico. A Lei trouxe mudanças significativas – permitindo maior controle e rigor formal –, tornou obrigatória a aprovação dos projetos, uma vez que a lei anterior não exigia aprovação previa e tampouco o acompanhamento na execução e na prestação de contas. Na sequência, a Lei 8.313/91 inseriu novas obrigações legais, como a democratização do acesso e as medidas de acessibilidade para pessoas com deficiência (DONATO, 2020). A Lei também criou uma série de inovações, como, por exemplo, o estímulo à projeção internacional do Brasil, assim previsto em seu artigo 1º: “desenvolver a consciência internacional e o respeito aos valores culturais de outros povos ou nações” e “estimular a produção e difusão de bens culturais de valor universal, formadores e informadores de conhecimento, cultura e memória”, num espírito universalista e das relações exteriores. O artigo 3º prevê a “realização de missões culturais no país e no exterior, inclusive por meio do fornecimento de passagens”.

Ratificou o FNC com o objetivo de apoiar projetos e ações culturais a fundo perdido, ou seja, com recursos direto, criou o Ficart, cujo papel é incentivar a produção comercial das atividades culturais, reforçando a indústria criativa, atraindo o investimento por parte da iniciativa privada. Na implementação da distinção entre os artigos 18 e 26 para o abatimento no Imposto de Renda por parte do patrocinador foram inseridos segmentos culturais com a possibilidade da dedução de 100% no IR para os projetos enquadrados nesse artigo. Essa diferença foi criada para atrair maior interesse da iniciativa privada em apoiar aqueles projetos menos comerciais e de cunho mais social e educativo (ROUANET, 2019).

A criação da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC) foi instituída por composição mista entre representantes do governo e da sociedade civil. Outra inovação foi o artigo 34, que criou a Ordem do Mérito Cultural “(…) em ato solene, a pessoas que, por sua atuação profissional ou como incentivadoras das artes e da cultura, mereçam reconhecimento”.

Estrutura da Lei nº 8.813/1991

Capítulo I dispõe sobre as finalidades e objetivos da Lei
Capítulo II ratifica o Fundo de Promoção Cultural e cria o (FNC)
Capítulo III institui Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficart)
Capítulo IV atualiza o Incentivo Fiscal
Capítulo V cria a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC)

Por que existe Lei de Incentivo Fiscal?

A ideia inicial, ao editar a Lei de renúncia fiscal federal, era estimular e organizar o mercado cultural, profissionalizar os trabalhadores da cultura, estruturar financeiramente e autonomizar o setor cultural, considerando-se especialmente o momento histórico de um Brasil recém-saído de uma ditatura militar de mais de 20 anos, para que, assim, artistas e produtores culturais pudessem alcançar independência financeira e, consequentemente, não mais dependessem de recursos governamentais ou de empresas privadas.

O incentivo fiscal tem por princípio estimular o desenvolvimento de determinado setor ou atividade econômica. Uma característica do incentivo fiscal, em tese, é ter vigência temporária. Assim, uma vez criado o mercado ou fortalecido o segmento que se pretendia incentivar, tal Lei perderia sua finalidade e, por fim, extinguir-se-ia (DONATO, 2021). Rouanet, quando propôs a Lei ao Congresso, nunca imaginou que esse mecanismo duraria 30 anos, pois era previsto como “temporário”, com benefícios temporários até que o mercado desse conta de financiar o setor cultural por meio de mecanismos vigentes na própria indústria cultural.

O que é a Lei de Incentivo à Cultura?

Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) formado por três mecanismos: Mecenato, FNC e o Ficart.

Mecenato: Fomento indireto permite que pessoas jurídicas e físicas financiem projetos culturais por meio de patrocínios e doações, com posterior dedução no Imposto de Renda.

FNC: Fomento direto, fundo proveniente do orçamento federal e de outros recursos públicos que permite ao Ministério investir diretamente em projetos culturais, por meio de editais, celebração de convênios e outros instrumentos similares.

FICART: Fundos de Investimento direto por intermédio da iniciativa privada, sob supervisão da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

Quem pode apresentar projetos?

Proponente: Pessoas físicas com atuação na área cultural (escritores, artistas visuais, atores, dançarinos, cantores etc.) e pessoas jurídicas de natureza cultural, de direito privado com ou sem fins lucrativos (fundações, ONGs, associações, institutos etc.) e de direito público da administração indireta (fundações e autarquias).

Quem pode ser patrocinador?

Podem investir em projetos culturais, por meio do mecenato, pessoas físicas que paguem Imposto de Renda (declaração completa) e pessoas jurídicas (lucro real).

O apoio a projetos vem direto do governo?

O apoio vem do capital das pessoas físicas e jurídicas, o valor investido será abatido posteriormente no Imposto de Renda, ou seja, o Estado deixa de arrecadar uma pequena parcela do Imposto, contudo pesquisas já evidenciaram que esse investimento retorna ao Estado – na forma de impostos, mais do que aporta por meio do incentivo.

Quanto o doador ou patrocinador pode abater do Imposto de Renda?

— 6% do valor de imposto devido para pessoa física

— 4% do valor de imposto devido para pessoa jurídica.

Dependendo do artigo no qual o projeto cultural esteja enquadrado a dedução varia:

Art.18 – 100% dos 6% e 4% podem ser investidos no projeto cultural.

Art. 26 – pessoa física de 80% a 60% e pessoa jurídica de 40% a 30% (dentro do limite de 6% para pessoa física e 4% para pessoa jurídica).

Como receber aporte do Mecenato (patrocínio) ou do Fundo?

Proponentes deverão ter seus projetos aprovados pelo Ministério da Cultura (atualmente Secretaria Especial da Cultura). No caso do Mecenato, permite captar recursos ou aporte direto do Fundo por meio de editais e convênios. O encaminhamento deverá ser através do endereço eletrônico do órgão responsável que disponibiliza o formulário para a submissão de projetos.

Como apresentar projetos para o mecenato?

1) Apresentação: o proponente insere sua proposta através da plataforma: http://salic.cultura.gov.br/.

O Ministério realiza a análise de admissibilidade da proposta a partir de critérios objetivos estabelecidos pela Lei nº 8.313/91 e pela Instrução Normativa em vigor. Se aprovado, o projeto recebe o número de PRONAC e será publicado no Diário Oficial da União (DOU), publicação da Portaria de Captação de Recursos.

2) Captação: após a publicação no DOU, está autorizado a captar recursos incentivados, cabendo ao proponente encontrar pessoas físicas ou jurídicas que apoiarão o seu projeto.

3) Análise técnica: após captado 10% do valor total do projeto, é encaminhado para um parecerista da área cultural em que o projeto está enquadrado.

4) Análise pela CNIC: após a emissão do parecer técnico, o projeto era apreciado pela Comissão, porém com o novo Decreto nº 10.755/2021, a CNIC perdeu a finalidade de subsidiar na aprovação dos projetos – passando a ser de instância recursal consultiva de projetos de incentivo fiscal indeferidos pelos pareceristas.

5) Homologação de execução: publicação da Homologação para Execução do Projeto “garantidora da aprovação do projeto em suas condições finais” (I.N Nº1/2022). A proponente poderá iniciar a execução do projeto após a captação 20% do valor total aprovado conforme detalhado no projeto

6) Prestação de contas: após a data final da realização do projeto, o proponente deverá prestar contas do que foi realizado: execução do objeto e financeira.

A comprovação dos objetivos inclui: acessibilidade, democratização do acesso, número de pessoas atingidas pelo projeto, contrapartida social, material de divulgação (contendo a inserção da logomarca) e orçamento acompanhado por notas fiscais.

Os impactos sociais e econômicos do Incentivo Fiscal e do FNC

Ao longo dos 30 anos, a Lei apresentou impactos e desdobramentos positivos na produção cultural. Isso tem-se evidenciado por meio do número crescente de projetos enviados, aprovados e com captação de recursos. Conforme dados do Salic foram injetados R$ 21.573.618.933,27 via incentivo fiscal, dados atualizados até 04 de junho de 2022.

O Incentivo Fiscal tem influenciado diretamente no crescimento do mercado cultural, e, consequentemente, gerado impacto na economia da cultura. A partir dos dados observamos que ocorreu um aumento do investimento na área cultural e, em decorrência disso, foi verificado um crescimento significativo nas ações culturais nesse período (DONATO, 2020). Observou-se também um crescimento no número de proponentes e de toda a cadeia cultural envolvida, ou seja, aqueles trabalhadores que atuam nos projetos, de forma direta (equipe) ou indireta (fornecedores), o que comprova também maior descentralização dos recursos.

Por intermédio desse mecanismo e de seus sucessores, as leis de Incentivo Estaduais e Municipais, a cultura passou a ocupar um espaço maior na produção cultural brasileira, seja pelo incentivo fiscal seja pelos editais. Evidentemente – a maioria desses projetos não teria como se desenvolver se não fossem o fomento e o incentivo no setor cultural.

Em 2018, pela primeira vez, um estudo encomendado pelo Ministério da Cultura (MinC) realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), intitulado “Impactos Econômicos da Lei Rouanet”, foi avaliado o impacto do mecanismo de incentivo à cultura no Brasil. O estudo apontou que as atividades culturais trazem um retorno econômico superior ao montante que o Estado efetivamente investe nelas. Os números mostraram que para cada real investido há um retorno R$ 1,59 ao país em toda a cadeia da economia. “A alavancagem do projeto é a receita total gerada a partir do valor aprovado pela Lei Rouanet para cada projeto” (MINC/FGV, 2018). Por exemplo, a contratação de pessoal para a montagem de um show, construção de um cenário ou a logística de hotéis, restaurantes, transportes etc. (DONATO, 2020).

O estudo foi apresentado pela seguinte estrutura: grupos de atividades econômicas contempladas pela “Lei Rouanet”; estrutura do plano de contas dos grupos de atividades; criação da cadeia de valor das atividades diretas; adaptação dos resultados ao Sistema de Contas Nacionais, Construção de Multiplicadores (MINC/FGV, 2018).

Também foi identificada a criação da cadeia de valor das atividades culturais, as quais são as atividades que geram emprego e renda, como, por exemplo, administração e manutenção de espaços, construção e reforma, tributos e contribuições, gestão e administração de projetos, formação acadêmica, técnica e empresarial, marketing, edição de som e imagem, criadores de conteúdo, coreografia e apresentações, produção de áudios, vídeos e programas de televisão, transporte e logística, entre outros (MINC/FGV, 2018).

A pesquisa mostrou também outros impactos causados pelas atividades correlatas que não foram avaliadas no projeto, como: o impacto dos gastos dos participantes das atividades culturais, de residentes e turistas, de participantes das atividades (alimentos e bebidas, transporte etc.) e um aumento no fluxo de turistas nos locais de realização das atividades. “Estes Impactos, apesar de importantes, são considerados externalidades positivas causados pelas atividades culturais patrocinadas” (MINC/FGV, 2018, p. 33).

O estudo concluiu que a Lei é uma política setorial de fomento e desenvolvimento que extrapola a fronteira da cultura. Seu impacto é percebido em 68 atividades econômicas diferentes. A distribuição dos gastos dos executores indica uma distribuição majoritária para as micros e pequenas empresas, possibilidade real de alavancagem econômica com os projetos culturais. Os eventos culturais impactam setores diferentes como: Turismo, Alimentos, Transporte etc. (MINC/FGV, 2018, p. 34).

O investimento na cultura por intermédio da chamada “Lei Rouanet” é a soma dos recursos financeiros destinados ao Fundo Nacional de Cultura e o valor autorizado para a renúncia fiscal, orçamento esse aprovado anualmente pelo governo através da Lei Orçamentária Anual. Nos últimos 12 anos, o valor autorizado para a captação de recursos teve uma variação entre R$ 2 e R$ 1,2 bilhões, mas, ainda assim, a captação permaneceu sempre um pouco abaixo, e, ao longo dos 30 anos de Lei Rouanet, a captação de recursos nunca alcançou o teto autorizado (DONATO, 2021).

Contudo, em 2019, o investimento via incentivo fiscal viabilizou 3,3 mil projetos culturais em todo o Brasil, por meio de patrocínio. Naquele ano, o incentivo fiscal representou R$ 1,48 bilhão, conforme aponta o último relatório do governo federal sobre a Lei de Incentivo à Cultura, publicado em março de 2020 (BRASIL, 2020).

A partir de dados retirados do Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura (SalicNet), observou-se um crescimento global na captação de recursos nos últimos 15 anos, e, mesmo com o orçamento em declínio a partir de 2015, a captação de recursos manteve-se constante até 2020, evidenciando mais uma vez a capacidade da produção cultural do país, mesmo em tempos de crise (DONATO, 2021).

O Fundo Nacional de Cultura fomenta editais diversos do Ministério e de suas vinculadas (FUNARTE, IPHAN, IBRAN, FBN, ANCINE e FCRB). Exemplos que recebem recursos do FNC incluem Pontos de Cultura; os diversos editais da Funarte; convênios firmados mediante editais e programas do Ministério, o Programa de Difusão e Intercâmbio Artístico e Cultural, que viabiliza o repasse de recursos para a compra de passagens para a participação em eventos de natureza cultural a serem realizados no Brasil ou no exterior, bem como os editais eventuais, como, por exemplo, o Cultura na Copa (BRASIL, 1991).

O FNC igualmente apresentou um crescimento no número de editais, prêmios e convênios – em especial a partir de 2003 e até 2018. Não se pode deixar de referir aqui a Lei de Emergência Cultural: Lei Aldir Blanc, criada em um momento de crise pandêmica da Covid-19, sendo previsto um valor de três bilhões de reais por meio de repasse direto “aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, em parcela única” para apoiar o setor cultural no momento de pandemia, parte dos recursos provenientes do Fundo Nacional de Cultura.

Quando a Lei Aldir Blanc foi criada, esse valor foi pensado como fontes de recursos: dotações orçamentárias da União; o cálculo do superávit do Fundo Nacional da Cultura apurado em 31 de dezembro de 2019 e outras fontes de recursos. Em outras palavras, pode-se dizer que o repasse desse montante tão expressivo, também foi possível por causa dos recursos do Fundo Nacional de Cultura, bem como pelo inciso VI, Art. 10, do Decreto 5.761/2003, vigente naquele momento e que prevê “transferência a Estados, Municípios e Distrito Federal para desenvolvimento de programas, projetos e ações culturais mediante instrumento jurídico que defina direitos e deveres mútuos”.

Desta forma, ainda que em escala menor, o Fundo Nacional de Cultura tem impactado diretamente as ações culturais, o crescimento da cadeia produtiva e da economia da cultura ao longo destes 30 anos.

Quem pode apreaCrescimento dos trabalhadores da cultura e da produção culturalsentar projetos?

Um estudo realizado pelo Observatório Itaú Cultural produziu o relatório “Dez Anos de Economia da Cultura no Brasil e os Impactos da Covid-19”, o qual apontou um crescimento das empresas criativas entre 2012 e 2015, acompanhando mesmo período de crescimento da captação de recursos via Lei de Incentivo. Após 2015, apresenta queda, ao mesmo tempo em que “o número de empresas criativas volta a um patamar próximo ao que era em 2010” (ITAÚ CULTURAL, 2020, p.104).

Contudo, esse estudo mostrou que houve um crescimento dos trabalhadores da economia criativa (formais e informais), ao comparar 2019 e 2020. Foi observado crescimento de 4,5% no emprego dos trabalhadores especializados na área cultural entre junho de 2019 e junho de 2020, mesmo em períodos de crise, o que confirma o papel relevante da cultura na atividade econômica brasileira (ITAÚ CULTURAL, 2020, p.71).

O Painel de Dados do Observatório do Itaú Cultural apontou que houve um crescimento nos postos de trabalho da economia criativa do terceiro para o quarto trimestre de 2020. Em 2021, os dados mostraram “um aumento do número de pessoas ocupadas em atividades criativas entre o segundo e o terceiro trimestres de 2021” (OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL, 2022).

Outro dado relevante que a pesquisa traz, são as exportações de produtos culturais, entre eles destacamos: Artes Cênicas, Artes Visuais, Música, Cinema e Rádio. Artes Cênicas e Artes Visuais, por exemplo, registraram um crescimento durante o período de 2018, sobretudo em 2019. A pesquisa aponta que “As Artes Visuais e as Cênicas têm registrado aumento significativo das exportações em anos recentes” e, ao comparar os valores de 2010, “foram exportados cerca de 15 milhões de dólares” e em 2019 “chegou a quase 400 milhões” (ITAÚ CULTURAL, 2020, p.140).

Os serviços do setor de Cinema, Música, Fotografia, Rádio e TV também registram um crescimento “de 40% entre 2014 e 2018, ano em que o volume de exportações ultrapassou o volume de importações” (ITAÚ CULTURAL, 2020, pp.140-150), o que evidencia os impactos da Lei – uma vez que um dos seus objetivos é estimular a projeção internacional do Brasil.

“Sinto-me (…) lisonjeado em saber que a Lei, que ajudei a redigir e defender na Câmara e no Senado brasileiros em 1991, completa, agora (2021), 30 anos de existência e apoiou inúmeros projetos” (ROUANET, 2019).

É graças ao patrocínio ou doação de empresas via os mecanismos de renúncia fiscal que temos hoje uma indústria cultural criativa e mais saudável no Brasil, sem depender, unicamente, de aportes diretos do Estado. A indústria cultural, que temos hoje, e que está no presente novamente ameaçada, foi construída ao longo de décadas, graças ao diálogo constante entre parceiros interessados (stakeholders), representantes de vários setores – governo federal, municipal, sociedade civil, advogados, artistas, cineastas, líderes comunitários e empresas de todas as áreas e especialidades –, que, conjuntamente, lhe deram forma, cada um em seu setor. Sem dúvida a Lei de Incentivo à Cultura viabilizou o apoio a múltiplos projetos que, por sua vez, geraram empregos e retornos à economia (ROUANET, 2019).

A Lei Federal de Incentivo à Cultura é o principal mecanismo de fomento no setor cultural brasileiro. Os dados evidenciam o quanto a Lei tem contribuído para o crescimento e a organização do mercado cultural, na geração de emprego e renda, produzindo impacto no desenvolvimento social e econômico.

Considerações finais

Ao pensarmos em uma política pública de desenvolvimento, não há como deixar em segundo plano o investimento em cultura, seja por meio de recurso direto ou indireto. Tais investimentos impactam diretamente a economia do país e estão diretamente interligados ao desenvolvimento humano e social. Como resultado, temos possibilidades e perspectiva de desenvolvimento socioeconômico harmônico, indiscutivelmente, proporcionando um melhor IDH – Índice de Desenvolvimento Humano.

Entendemos que ao Estado cabe formular políticas públicas para garantir a todos os direitos constitucionais do acesso à cultura, da liberdade de expressão, criar ferramentas para apoiar, fomentar e incentivar os artistas e os trabalhadores da cultura.

Não fosse o incentivo fiscal, o Estado teria que fazer aportes diretos à cultura e isso dependeria da pauta de prioridade de cada governo. O incentivo fiscal é um mecanismo que não depende da agenda governamental, pois, em tese, é uma política de Estado.

A Lei de Incentivo à Cultura talvez não seja o mais atual e relevante mecanismo para apoiar a cultura hoje no Brasil, porém, no momento, é o único. A Lei foi muito modificada ao longo destas três décadas. Algumas modificações foram importantes e necessárias (como a alteração dos artigos 18 e 26, que procura apoiar aqueles projetos que tenham menor visibilidade de mercado, assim como medidas que procuram buscar patrocínio além do eixo Rio-São Paulo). Entretanto, outras medidas, como a redução das competências da CNIC, que passou a ser apenas de instância recursal, redução dos tetos de cachê para artistas e a limitação dos projetos de Planos Anuais de Organizações (Organizações Sociais – OS) e outras mudanças que terão impacto negativo para o setor cultural. Acreditamos que novas revisões na Lei devam levar em consideração as verdadeiras necessidades dos produtores culturais e dos consumidores da cultura, de modo que a cultura, a produção e o consumo cultural não sofram de maneira irreparável.

Referências bibliográficas

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 5 out. 1988.

______. Instrução Normativa Secult/MTur nº 1, de 4 de fevereiro de 2022. Diário oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 67, 08 fev. 2022.

______. Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991. Diário oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 30.261, 24 dez. 1991.

______. Lei nº 14.017, de 29 de junho de 2020. Diário oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1, 30 jun. 2020.

______. PL nº 1.448, de 22 de outubro de 1991. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 1991. Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-
-legislativas/192259. Acesso em: 19 fev. 2022.

______. MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Boletim mensal sobre os subsídios da União: Lei Federal de Incentivo à Cultura. Edição 16, Brasília – DF, 2020.

______. MINISTÉRIO DO TURISMO. [Site] Brasília, [20–]. Disponível em: . Acesso em: 29 jan. 2022.

______. Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura (Salic). Disponível em: <http://sistemas.cultura.gov.br/salicnet/Salicnet/Salicnet.php#>. Acesso em: 29 jan. 2022.

DONATO, Adriana. Ministério com cultura: gestão Gilberto Gil (2003-2008). 2020. Tese (doutorado), Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2020.

______. Trinta anos de Lei Rouanet. Observatório Itaú Cultural. São Paulo: Itaú Cultural, 2021.

ITAÚ CULTURAL. Dez anos de economia da cultura no Brasil e os impactos da covid-19: um relatório a partir do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural. São Paulo: Itaú Cultural, 2020.

______. Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural, São Paulo, 2022.

MINC/FGV. Impactos Econômicos da Lei Rouanet, Fundação Getúlio Vargas, 2018. Disponível em: .

RIBEIRO, Paulo Silvino. “Os anos 80 no Brasil: aspectos políticos e econômicos”; Brasil Escola. Disponível em:
<https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/os-anos-80-no-brasil-aspectos-politicos-economicos.htm>. Acesso em 19 de fevereiro de 2022.

ROUANET, Sergio Paulo. Entrevista gravada para o Documentário (em produção) “Rouanet: cidadão do Mundo” Tatu Filmes, dirigido por Adriana Rouanet, 2019.